A história de “O Rei Leão” é um sucesso mundial. Podemos supor que o grafismo da Disney é a causa deste sucesso, mas dar demasiado valor a esta causa, seria passar ao lado das almas que são tocadas por esta história, inspirada em Hamlet.
Simba é o filho varão do amado rei Mufasa e da rainha Sarabi. O seu nascimento é abençoado pelo sábio babuíno Rafiki, mas é ensombrado pela inveja de seu tio Scar (cicatriz), o irmão do rei. Ferido no seu orgulho de pretendente ao trono, a sua dor não sara, antes se tornando o foco da identidade psicopata de Scar.
Quando Simba atravessa o deserto, atravessa também um deserto emocional. Não é apenas a sua sobrevivência fisiológica que está ameaçada. Também a sua alma sangra, pelo sentimento de culpa (Simba foi manipulado, para acreditar que matou o seu amado pai).
“Hakuna Matata!” (do Swahili, significando “não há problema”). – Pumba e Timão persuadem o desesperado Simba a “esquecer o passado” e a negar o valor da sua história. Oferecem-lhe um oásis de sensações. Criam uma sensação de anestesia, bastando para tal que Simba abdique dos seus sentimentos, do seu pensamento, da sua história e da sua identidade.
Simba recupera homeostasia ficando, no entanto, a impressão de um apagamento, um estado “zombie-like”. Também o espectador respira de alívio, após as lágrimas que irromperam no escuro da sala de cinema.
Talvez a história acabasse por aqui, monótona e politicamente correta, mas eis que irrompe Nala, a amiga de infância de Simba que fez uma longa viagem, à procura de alimento para o reino faminto. Nala julgava Simba morto, e o seu choque contém um evidente amor por Simba, mas igualmente o amor ao reino caído nas mãos de Scar e das cúmplices hienas. Nala exorta Simba a voltar e tomar o seu lugar no trono.
Simba resiste ao apelo de Nala. Teme o sentimento de culpa, recusando-se a pensar no passado. É então que encontra o sábio Rafiki, o qual reage à atitude de alheamento de Simba, e se apresenta como um guru Budista. Simba quer negar o passado, e Rafiki dá-lhe uma valente paulada. Simba queixa-se, e Rafiki responde “Isso é passado!”, mostrando o ridículo da cobarde postura de Simba.
Simba aceita, então, agarrar a sua história. Mas a convicção desta luta só atinge o seu clímax quando, confiando na morte de Simba, o ardiloso Scar confidencia a Simba que matou Mufasa. Simba percebe que a sua culpa era imaginária, vencendo vigorosamente Scar.
Esta história é um tratado de paixão. Foi a paixão que alimentou as bilheteiras desta saga!
Não só de paixão, mas também de manipulação e alienação se alimentam algumas bilheteiras. Vem a propósito o artigo “The problem of mindfulness”, publicado hoje mesmo por Sahanika Ratnayake na Curio, parceiro da AEON Philosophy. Exorto-vos – Como Nala exortou Simba! – a que procurem na internet e leiam este artigo.
Sahanika foi criada no Budismo e, na universidade encontrou um ambiente muito favorável ao desenvolvimento desta corrente. A sua experiência resultou numa impressão de alienação e desintegração. Optou por pesquisar.
Conclui que esta corrente tem grandes semelhanças com o movimento budista, fundamentando-se na doutrina (budista) de anatta, ou “não-eu” a qual propõe que não existe base individual para a identidade. Os exercícios budistas para “a busca da verdade, ou anatta” são considerados por Sahanika como sensivelmente iguais aos que são propostos aos praticantes de mindfulness.
Resta-me oferecer o caminho do entendimento “que lambe as feridas”, reconhece a história e desenvolve uma relação criativa.
Sérgio Cunha
Psicólogo Clínico