Fleck

Fleck

Muito se tem falado sobre mais um filme associado ao imaginário de Batman e do seu vilão – Joker.

O filme desperta o alarme ou a adesão panfletária daqueles que encontram no ódio a resposta para problemas sociais. Mas não é dessa Utopia (nem a miséria que ela tem criado ao longo da história moderna) que falamos hoje.

Este filme apresenta-nos a miséria de um drama íntimo, e é nesse microcosmos que situamos o foco desta crónica.

Arthur Fleck sente estranheza relativamente à sociedade que o rodeia. Manifesta essa estranheza à técnica de apoio social que o acompanha, no âmbito de um “distúrbio neurológico” que lhe está diagnosticado. Ela revê as suas notas no diário, tentando persuadi-lo a manifestar pensamentos “positivos”, e não tanto o fluxo emocional de colorido mórbido que povoa o seu exercício de preparação de conteúdos humorísticos.

Arthur Fleck faz do humor o seu ganha-pão, mas essa opção decorre directamente da forma como sempre foi visto pela sua frágil mãe: para ela, “Arthur veio [ao mundo] para trazer alegria”.

O riso inquietante e compulsivo de Arthur Fleck é assumido por si como um arbitrário e imprevisível fenómeno neurológico, cuja base orgânica é apresentada como uma desculpa, uma forma de ser aceite, mas tem o efeito de ofuscar qualquer tentativa de escuta, entendimento, eco emocional.

Arthur Fleck irrompe num riso aparentemente irracional em situações de desamparo: a técnica social, mais preocupada em domesticar a sua sensibilidade do que em entender o seu sofrimento; a mãe da criança sensível, que interrompe um momento inocente e criativo, com uma atitude tosca, rude e ingrata; os jovens arrogantes e violentos que assediam uma vítima frágil.

Arthur Fleck (“Fleck” = pequena mancha) transporta uma sombra do seu passado. Descende de uma situação de violência e opressão. Não o sabe inteiramente (ou conscientemente), mas suspeita-o, e essa suspeita é um “pensamento à procura de um pensador” (Bion), que se reconhece nos momentos mais perturbadores.

No ambiente sombrio da casa de sua mãe, Arthur vive uma “hilariante melancolia”, uma tristeza sem nome, sem lugar, na eterna e irrazoável expectativa de suporte. Neste ambiente, os elevadores falham, dizendo-nos que alguns conteúdos emocionais podem nunca aceder a níveis elevados de compreensão. O ar é irrespirável, porque a dor e a raiva não acedem ás janelas do pensamento!

Falamos de uma história extremamente mórbida. É um filme que ameaça violentamente o pára-choques emocional de todos nós!

Por mais que admire esta obra prima da sétima arte, não a recomendo a todos.

O que posso recomendar a todos, e a cada um de vós, é que tenhais o respeito e o recato necessários ao reconhecimento da dimensão simbólica do comportamento!

Um comportamento aparentemente perturbador ou desligado da realidade terá, se lhe for dada a escuta paciente, um significado a contar, uma mancha (fleck) a reconhecer, uma dor a abraçar.

O reconhecimento da dimensão simbólica (e da carga afectiva) é muitas vezes confundido com um juízo de valor. A resposta massificada nega o símbolo, e coloca uma mordaça de mandalas, sedutora, pseudo-adaptativa.

Defender a saúde mental, requer uma atitude firme de rejeição das mordaças ao pensamento. Não um maníaco movimento incendiário, mas o paulatino, sensível, respeitador gesto do arqueólogo que olha antes de desvendar, e se move num gesto suave, mas seguro.

Dr. Sérgio Cunha

Psicólogo Clínico