Em Outubro, Ponta Delgada receberá impressores tipográficos de todo o mundo[1].
O que leva esta comunidade a manter viva uma prática caracterizada pelo concreto, numa época de digitalização e desmaterialização?
Haverá nostalgia do papel impresso, por oposição à composição desmaterializada que domina a comunicação de hoje?
Num culto oposto à efemeridade do ecrã, supomos a necessidade de superação das leis da vida, da morte.
Os antigos egípcios abordavam a morte com optimismo[2], entre uma primeira morte, provisória, e a segunda, definitiva. Essa viria com o esquecimento pelos entes queridos.
O morto era evocado em inscrições, preservando a sua memória.
O corpo era acompanhado do “livro dos mortos”, com instruções para enfrentar o Tribunal de Osíris. Tendo sucesso, o seu coração iria “pesar menos do que uma pena”, e poderia entrar no “Duat”, o submundo dos mortos.
A escrita hieroglífica era pictográfica e ideográfica. Os símbolos utilizados incluíam pássaros ou cobras, cujas capacidades eram temidas, face ao defunto. Receando que as imagens tomassem vida própria e atacassem o coração do morto, eram cortadas as asas do pássaro ou a cabeça da cobra.
Esta linguagem ocupa uma fase na história do desenvolvimento do simbolismo, na qual o elemento utilizado para representar algo se confunde com a coisa representada.
Este fenómeno assemelha-se ao conceito de “equação simbólica”, descrito no pensamento psicanalítico de Hanna Segal.
Dos diversos processos de impressão utilizados pelo Homem, alguns não terão sido aplicados numa realidade favorável ao seu desenvolvimento. A utilização de uma linguagem pictográfica e ideográfica implica a necessidade de utilizar centenas de caracteres, como terá sucedido na China, no século X, com uma tentativa limitada pela multiplicidade de caracteres.
Em 1440, Johannes Gutenberg desenvolve a prensa de tipos móveis, utilizando o alfabeto latino europeu, com um número limitado de elementos discretos (as letras), cujas combinações permitem um universo de representação.
O monopólio da transmissão do conhecimento começa a ceder, massificando-se e abrindo espaço à liberdade de pensamento.
O conhecimento – até aí encarado como um privilégio de classe, ou um ritual de repetição de textos “sacralizados” – também será objecto de análise, articulação e questionamento.
O conhecimento deixa de ser eminentemente memorizado e repetido em rituais (de submissão), para se “democratizar”.
Temos hoje a possibilidade de questionar os significados que nos oferecem. Retornando a Hanna Segal, observamos que a “equação simbólica” é uma falha da simbolização. A confusão entre significante e significado, é uma marca da alucinação. Um objecto, palavra ou ritual, aparentemente desprovido de significado, é evidenciado para negar um luto ou apagar um conflito interno (ex: rejeitar o alimento, negando a própria agressividade; rejeitar a dependência inerente à diferença entre os sexos, ingnorando-os).
Na era da digitalização, ecrans led e videomapping oferecem-nos conceitos como “género” ou “crueltyfree”, como se de uma manifestação da “luz da verdade” se tratasse. Observamos a imposição de um conceito difuso, em substituição do conceito “sexo”, ou de uma dieta pobre, como um caminho de salvação.
Urge perseverar no questionamento, na análise e na discussão da realidade, mantendo critérios de bom-senso, procurando a fundamentação na evidência, sendo mais coerente do que servil.
Sérgio Cunha
Psicólogo Clínico
[1] http://www.tipoumencontro.pt/pt/
[2] https://quarentaecincograus.libsyn.com/63-ins-torres-porque-que-o-antigo-egipto-nos-continua-a-fascinar-tanto