Fado e Flamenco

Fado e Flamenco

Identidade é um modo de vida, mas será também uma maneira de morrer?

O Eurostat publicou em 2019 um relatório de estatísticas dos anos 2013-2015, caracterizando a vida na Europa em variados critérios.

Detenho-me num deles: a causa de morte mais comum, nos diversos territórios.

O Eurostat apresenta dados de diferentes territórios dos vários países europeus.

Poderíamos supor alguma semelhança entre os dados recolhidos em países com uma herança genética semelhante, como os povos ibéricos. No entanto, os dados apresentam um cenário bem distinto: em todos territórios de Portugal continental e RAA, a principal causa de morte neste período foi o acidente vascular cerebral, enquanto que em todas as regiões de Espanha (continente e ilhas) a causa principal de morte, sendo igualmente cardiovascular, teve como órgão atingido o coração.

Deste cenário, destaca-se a RAM, com a pneumonia como causa principal de morte, eventualmente por influência da epidemia de Dengue, ou outro fenómeno que não abordaremos.

De que forma poderemos entender este dado estatístico tão “marcante”?

Supondo que as populações destes territórios resultam de uma história e povoamento globalmente comum, poderiam os hábitos alimentares explicar as diferenças? Mas, se assim fosse, a alcatra, a dobrada o queijo da Serra ou da Ilha, o jamón serrano, ou os calamares sevilhanos haveriam de concorrer do mesmo modo para aumentar o risco de qualquer evento cardiovascular. Mesmo os cuidados de saúde, porque haveriam estes de ser significativamente mais eficazes na eleição do órgão afectado?

Wilfred Bion (psicanalista inglês) concebeu uma teoria baseada nas suas “Experiences in Groups” (1961), referindo modos de funcionamento dos grupos espontâneos que evidenciam uma espécie de “mito grupal”. Bion definiu quatro tipos de funcionamento do grupo: (1) o grupo de trabalho, em que a necessidade de realizar uma tarefa impõe a contenção de emoções em níveis razoáveis; (2) o grupo messiânico, onde a esperança de uma solução mágica tolhe os esforços de trabalho, e impede a análise de conflitos ou a relação entre os membros do grupo; (3) o grupo de ataque-fuga, onde a manifestação do conflito é de tal modo exacerbada que compromete o trabalho ou as outras emoções de suporte e esperança; e (4) o grupo de dependência, em que a dependência de um líder benevolente tudo trará, desvalorizando os esforços do grupo de trabalho, impedindo a manifestação do conflito e limitando a esperança na melhoria.

Embora Bion apresente o grupo de trabalho como um espaço de emoções (por ele designadas como “supostos básicos”) contidas, ele desenvolve a ideia de que estes grupos podem ser mais influenciados por um ou outro “suposto básico”.

O conceito de “suposto básico” é definido por Bion como uma emoção já presente no organismo (definido como “aparelho protomental”) do bebé. Esta emoção irá progressivamente encontrar expressão no “aparelho mental” em desenvolvimento. A expressão equilibrada dos diferentes supostos básicos seria, segundo Bion, necessária à manutenção da saúde física. Bion apresenta diversos exemplos de “somatização” resultante de um impedimento à mentalização de um suposto básico.

Sendo portugueses e espanhóis povos “irmãos”, esta expressão espelha a proximidade afectiva (e mesmo genética!), mas não esconde a diversidade dos modos de ser.

Seja no fado ou na Chamarrita, o Zé António chora a cantar, embala a sua dor, embala-se nela, e reencontra-se no ritmo da vida. Chora-se, mas raramente se rebela ou conflitua! Embala-se, e adormece num conflito adiado.

Ali ao lado, bate o pé e latem as palmas de Mari Carmen! Mari Carmen não chora nem fraqueja! Grita, e lateja!

Enquanto o Zé António remói um conflito que não se atreve a articular, explodindo num AVC, Mari Carmen não tem conflitos por expor, porque é da sua forma de ser a verbalização e a vivência do conflito.

Enquanto Mari Carmen esmaga duramente a sua dor, até parar o coração, Zé António sofre as emoções na sua canção, no seu ritmo dolente e protector.

Dr. Sérgio Cunha

Psicólogo Clínico